quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Uma e Muitas

Clarice Lispector dizia que Brasília não tem segredos porque não tem esquinas. O Campus também não tem, mas está repleto deles. Mas a sua condição de nascimento também foi diferente. Os primeiros traços de sua arquitetura atestam a certidão. Depois, as pernas, cruzando caminhos e diminuindo distâncias, e a necessidade realizaram o resto. Mas isso não tem a ver com políticos, como Brasília, porque o Campus reflete a alma da cidade onde habita.
Ele não tem ruelas brutas, forradas de pedras quadradinhas, que escalam morros e desandam junto com a água nas chuvas de verão, mas tem seus labirintos, construídos na planura de um terreno pantanoso, aterrado para ceder lugar ao projeto venturoso de uma educação para todos. Os caminhos serpenteiam conduzindo aqueles que não os conhecem para o lugar onde não queriam ir. Como sair do Hospital Universitário e ir para o Departamento de Matemática? Ora, passe pela Biblioteca, vá até o Básico. O Depto está logo ali, atrás, numa construção baixa. Cheia de corredores. Labirintos de salas e laboratórios. Ah, não se preocupe. Tem muita gente circulando. Alguém, mais adiante, vai indicar o caminho. Mas não tenha muita pressa. Esse Campus foi criado à semelhança dos antepassados dessa terra que só tinham a Ilha cercada por todo esse mar… Eles vieram de Açores, uma ilha pedregosa, com mar sempre muito agitado. Aqui tiveram de esquecer as recordações e aprenderam a entralhar redes e construir barcos para ir à pesca. E aprenderam um tempo de espera e um modo distintos de viver. Mas o Campus não tem toda essa calma de espera. O calendário que marca o tempo aqui também convive com prazos.
Aqui, dentro desse universo, existem muitas matizes, muitos sorrisos e muitas histórias diferentes. Seu tempo é buliçoso, seu espírito é múltiplo. Sua cara é brasileira, de olho claro ou preto, fronte larga ou estreita, nariz afilado ou largo. Tem a mistura de todos os tons e naturalidades. De Manaus a Angola, passando pela Itália ou Alemanha. E os sotaques, ao final (do curso? da vida?), passam a solfejar a sombra da sonoridade dos "xis" ilhéus. Aqui, habitam doutores, mestres, alunos, servidores? Aprendizes. Gaúchos, paulistas, baianos, matogrossenses, mineiros, brasilienses, bolivianos, peruanos, chilenos, angolanos, haitianos. Catarinenses. Açoritas. Ilhéus. Gente que aprende a amar o relevo irregular que conduz os morros para o espraiado da areia ou para a sombra úmida dos mangues. E come pirão com peixe frito, à beira d'água, nos bancos toscos dos restaurantes de filhos de pescadores. E caminha na avenida das rendeiras, observando o fiar de linhas, na almofada de bilro. Vá lá, tem o Costão do Santinho, mas isso já é outra história. Ó lholhó! O mundo tinha que descobrir essa maravilha!
E alguém imaginou que ali, atrás do morro da Cruz, neste terreno de chácara, alagadiço, poderia se construir uma universidade. Aqui, neste ponto de encontro (começo ou fim?) dos bairros Trindade, Córrego Grande, Pantanal, Serrinha, Carvoeira. A meio caminho de tudo. É só fazer uma curva - a quase um cotovelo de distância - e o Campus está ali, aninhado entre as residências - pobres, modestas, boas, ricas - e o comércio, sempre crescente. Afinal, é quase uma cidade… Uma população que precisa morar, vestir, comer, se divertir. Gente que estuda, que sonha, estuda um pouco, espera, estuda mais, pensa, que se transforma.
Ponto para encontro de muitas histórias de vida. A baiana que quer o título para ser professora, mas sofre com a saudade do acarajé e o cheiro de mainha. O africano, vindo da Nigéria, que veio para estudar e ficou para se tornar sócio em uma loja de colchões. O paranaense, geniozinho da informática, que veio sob recomendação do pai, se formou - engenheiro e mestre! - e não queria ir embora, mas o emprego em Curitiba pagava melhor. No entanto, não se conformou: comprou um apartamento pequeno, perto do Campus, para as férias de verão. Afinal, quem conhece bem a cidade, não precisa ficar à beira da praia… Também, sabe como é… Aqui, pertinho do Campus, é mais barato. Ah! A esposa, professora, também está estudando, ali no Campus. Curso de Doutorado. Vai e vem, vem e vai, quase toda a semana, nesta 101 cheia de perigos e esperanças.
Estrada que traz também um micro-ônibus da Unisul. E professoras para a pós-graduação. Uma psicóloga que mora em Florianópolis, dá aulas em Tubarão, e estuda no Campus. Duas educadoras, casadas, com filhos, residentes em Criciúma, atravessam os perigos da estrada para sentar no anfiteatro e assistir as aulas com outros trinta (quarenta? cinqüenta?) colegas da educação, da informática, da engenharia, do jornalismo, da psicologia. No intervalo, a pausa para o café é aproveitada para trocar idéias, traçar planos de profissão, confessar esperanças de vida. Entre um cafezinho e uma água, uma receita. De bolo? Não, uma dica para adiantar a dissertação. Uma luz para os que estão chegando agora ou ainda não aprenderam que a vida aqui também é de luta e esperteza. Esperteza honesta. Aqueles que guardam, temerosos, a informação no bolso do colete, terminam por descobrir o gosto amarfanhado de solidão nos cantos das salas ou nas cadeiras do bar. Não criam laços nem com o Campus nem com a vida daqui. Chegam e vão sós, apenas com um título no currículo e um diploma para guardar na escrivaninha da memória.
Esse clima de caras e idéias diferentes não alcança aqueles que nunca sentaram sob a sombra das árvores, no trajeto entre a Biblioteca e a Reitoria, para um dedo de prosa ou um descanso - sagrado! - entre uma aula e um seminário. Ali, do lado do Templo, de vitrais coloridos, na paz espessa de um espaço ecumênico aberto a todos, inclusive aos que não tem o credo em Deus Pai, mas acreditam na luz do conhecimento e têm esperança que a troca de idéias e criatividade possam nos conduzir à Luz. Como o físico, recém formado, que investiga partículas atômicas e se espanta, que maravilha!, com as iniciativas de vida que acontecem nos confins do Universo e aqui mesmo, sob o céu de todos os dias, no Campus, onde se descobriu e se revelou. Sofre agora, entre livros e artigos científicos, a dúvida do amor correspondido.
À mesma sombra, cálida no verão do meio dia, o professor de educação física aproveita o descanso para contar sua história bem sucedida. Ele e a mulher, quase titulados, é uma questão de tempo!, vão para Paris, mas querem voltar antes que o bebê nasça. A viagem, que não estava nos planos, foi bem vinda, porém muito menos do que o filho, há muito esperado.
Em outros bancos, num tempo de espera diferente, a moradora de Itajaí aguarda sua vez na fila do exame radiológico do Hospital Universitário e diz que agora está bem. O tratamento para debelar o câncer de pele, seguido à risca, têm surtido efeito. O resultado está na cara: a segurança de estar saindo do poço transparece em sua fisionomia e quase apaga as pequenas cicatrizes das cirurgias realizadas para extirpar os tumores. Depois de terminado o exame, é aguardar o carro da prefeitura que vem buscar também outras duas pessoas… Todos recebem acompanhamento médico e tratamento que não estão disponíveis no município onde moram.
Esses retalhos, pequenos recortes do cotidiano, vão se juntando a muitos outros, de diferentes cores e texturas, e formam o tecido muito espesso da história do Campus. Uma e muitas histórias.

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